Como é a energia de um lugar? O que faz com certos lugares sejam especiais e outros apenas um “truque para pegar turista?”
Ou, particularmente, será que aquela energia, tão boa, que tivemos na oficina de Taipa de Pilão, em que erguemos a primeira parede do barracão, ficou, pelo menos um pouquinho, impregnada ali naquela parede?
Estava pensando nisso porque acabei tendo de cancelar a vivência que faríamos para erguer a última das paredes de taipa, pois a previsão era de muita chuva. Estava pensando se conseguiríamos repetir aquele mesmo clima. Repetir nem é a palavra certa, afinal, pessoas diferentes, vibes diferentes. Mas acho que sim, teríamos reunido gente com vontade de fazer junto.
Humanos devem ser geneticamente programados para trabalharem em grupo, existe algo mágico em trabalhar ao lado de outros seres humanos. É assim que esse mamífero sem presas ou garras sobrevive, é assim que se formam comunidades.
A primeira parede foi feita num curso/mutirão que terminou cheio de sorrisos. As demais trabalhamos em três ou quatro pessoas, o que é pouco. E o trabalho é cansativo, além de repetitivo. Uma repetição com ritmo próprio, ditado pelo tempo necessário para se bater cada fiada, deixando os grãos de argila e areia se encaixarem — como ônibus lotado no centro, o motorista gritando “vai mais pro fundo, aperta aí!”.
Na primeira o processo foi todo manual. Nas demais, usamos ferramental moderno. Será que usar compactador pneumático muda a energia do trabalho? Bater paredes de taipa na mão só é viável em esquema de mutirão, quando se divide o peso do trabalho em vários ombros. Em poucos, só conseguiríamos fazer com uma ferramenta dessas.
Ainda assim, todas as nossas paredes também terminaram em orgulho, ao tirar as formas e ver o resultado. Uma parede de taipa tem uma beleza própria, e um processo muito próximo do artesanal, algo do padeiro que se orgulha do pão que acaba de sair do forno, por mais que faça isso há anos. Ou será que um dia o padeiro se cansa e deixa de se orgulhar?

Se éramos eu, Antônio e Daniela no começo, depois de seis paredes, Jean começou a nos ajudar. Primeiro entendendo o processo de preparação da massa, até que uma hora ensinei-o a compactar a fiada dentro da forma.
Com a ajuda dele conseguimos agilizar muito o processo, principalmente, liberando a obra para andar sem mim, que tenho outros compromissos com minhas crianças e nem sempre consigo me dedicar todos os dias. Mas me bateu uma pontada de tristeza pensar que não poderia mais dizer ter batido cada uma das fiadas daquele lugar. Uma substituição de “eu que fiz” por um “paguei para fazer”.
Será que isso muda a energia do lugar? Será que isso existe? E afinal, o que raios eu quero dizer com “energia”?
A gente sente algo quando a gente entra em um lugar. Igrejas são construídas em escala monumental para nos fazer sentir pequenos. Visitar uma cachoeira grande o suficiente, ou qualquer formação geológica nos faz perceber o piscar de olhos que é o tempo de nossas vidas.
Caminhar em cada cidade do mundo é uma energia única.
Perceba que estou usando a palavra “energia” de uma maneira bem solta, que pode ser traduzida apenas como “sensação”, ou pode ter um sentido mais cósmico e mágico. No momento não me interessa definições mais precisas, às vezes as palavras vagas são suficientes.

Outro dia fui num evento em uma antiga fazenda cafeeira aqui da região. Lugar lindo, casarão enorme, pé direito de cinco metros de altura, construções preservadas e atualizadas. Passado o impacto inicial, comecei a prestar mais atenção, até perceber que esse porão embaixo da cozinha devia ser onde ficavam os escravos. E me dei conta de que tudo aquilo foi construído em cima de suor e sofrimento negro para usufruto de um senhor branco e rico.
Ouvimos uma breve palestra sobre a história daquela fazenda. Com a crise do café foi vendida para um grupo de investidores americanos (brancos, ricos). Recentemente foi comprada pela família atual — o lugar estava semiabandonado, estão restaurando o espaço para torná-lo um centro cultural.
A arquitetura não mudou naquele período de duas horas que eu estava ali. Nem o sol que brilhava num céu azul sem nuvens. Mas aquele lugar lindo foi adquirindo uma certa… melancolia? A energia mudou. Ou talvez seja só coisa da minha cabeça mesmo, afinal, o piquenique que comíamos estava delicioso.
Enquanto dirigia de volta, pensava se é possível construir ou controlar isso? O que não são museus, land-art e arquitetura senão espaços desenhados para fazer com que você sinta? Maravilhamento, incômodo, alegria, reflexão, conforto.
E me pego refletindo sobre qual a energia que quero que o Espaço Kabouter tenha. Ou como fazer com que os valores que me guiam nesse empreendimento abracem o visitante no instante em que pisar nesse solo.
Claro, uma parte é construída pela arquitetura, pela escala, escolha de texturas, formas e materialidade do espaço. Estou trabalhando nisso com a ajuda de gente muito mais competente do que eu. Outra parte é paisagismo. Bosque, planta, flor, caminho de tijolos amarelos acompanhado por arbustos. Adoro a expressão que uma amiga usa, “casa de bruxa”, para denominar lugares onde as plantas crescem para onde quiserem, onde trepadeiras se penduram no beiral da janela e no muro, onde os arbustos crescem sem topiaria.
O contrário do que podemos chamar, talvez, de “natureza morta”: jardins cuidadosamente aparados de condomínios, cercas vivas milimetricamente aparadas e plantas educadinhas em seus próprios cercadinhos jamais esticando uma raizinha para além dos espaços delimitados por blocos de granito cortado em retângulos.
Existe diferença entre uma mesa feita à mão e suor, de madeira, e uma mesa feita por um robô, projetada para ficar idêntica à primeira? Entre uma obra feita pelo próprio artista de uma obra em que o artista apenas criou a concepção e empregou um time de pessoas para executá-la, sem nem estar presente? Existe significado além da materialidade final?
Uma parede de taipa de pilão guarda a energia de cada pessoa que estava ali compactando a terra, cada gota de suor fortalecendo essa alquimia do espaço?
Guarde as perguntas, acho que elas valem por si só.
Mas vou arriscar um pitaco. Provavelmente só uma parte da resposta.
Toda relação é feita de camadas. Inclusive a nossa relação com espaços. Se num primeiro momento temos o espaço físico, a materialidade do lugar como filtro principal, logo as impressões passam a ser mais individualizadas. É claro que o jeito que você enxerga aquela casa mágica onde passou sua infância vai ser muito diferente do jeito que o seu cônjuge a enxerga (talvez uma casa velha cheia de goteiras e portas que rangem).
Quando fui visitar a antiga casa de fazenda, tive a majestosa primeira impressão. Aos poucos, conforme eu entendia a história, minha relação com o lugar foi mudando.
Porque histórias dão significado.
Visitar Stonehenge não tem tanta graça se você achar que aquilo é só um círculo de pedronas que algum guindaste levou para lá uns quinze ou vinte anos atrás.
Então, eu saber que aquela parede específica foi erguida durante um curso, num mutirão do qual todo mundo saiu feliz, que mais de vinte pessoas contribuíram, faz diferença para mim. Eu saber que participei ativamente da construção das dezesseis paredes de taipa é importante para mim. A primeira foi feita coletivamente, nas próximas sete aprendi a fazer, nas últimas oito já estava ensinando e dividindo a responsabilidade.
É por isso que gosto de conversar sobre os desafios de construir um espaço sustentável, sobre como é difícil plantar um bosque sem usar veneno contra formiga, sobre escolhas de materiais, sobre sonhos, sobre o futuro.
Essa newsletter, o site do espaço, e todo o “marketing” que faço antes mesmo do espaço estar aberto a receber visitas é uma forma de contar e preservar as histórias de sua construção.
Porque eu sei que quando vocês vierem, sabendo como foi construir tudo isso aqui, vai ser especial. Porque a vida não têm sentido senão pelas histórias que contamos.

