O melhor bunker no fim do mundo é um galpão cheio de amigos

Secretamente, sou um prepper. O Espaço Kabouter é meu bunker.

Preppers, ou “preparadores”, em uma livre tradução, são aqueles malucos que acham que o mundo vai acabar em breve, e se planejam para a catástrofe. Cada um à sua maneira.

Quem tem dinheiro gasta milhões em um abrigo subterrâneo com piscina de hidromassagem (quem vai limpar essa piscina? Onde vai comprar cloro?). Quem não tem se vira como dá, mantendo sempre a mochila de desastres pronta na porta de casa, ou acumulando latarias na despensa.

Em comum a todos está a ideia de catástrofe, a crença de que, mais dia, menos dia, a civilização sofrerá um colapso e apenas os preparados vão sobreviver. A causa pode variar de instabilidade política, quebra de sistemas eletrônicos das finanças globais ou, claro, crise climática.

Nem preciso ir muito longe, você já deve estar imaginando um dos vários jogos, filmes, HQs ou livros que exploram cenários parecidos, talvez com um barbudo de olhos profundos e um rifle na mão.

Pois é, eu penso muito nisso. A quebra de paradigma vai vir. Nas próximas décadas estamos de olho em uma mudança de sistema econômico, um rearranjo de prioridades. E a Natureza não será generosa conosco.

Então construo uma vida pensando no fim. E o Espaço Kabouter, com seu barracão enorme feito em bioconstrução, que está sendo erguido para reduzir o seu impacto ecológico, é parte disso.

Estado atual do Espaço Kabouter.

Não sou um prepper. Estou mais para pacifista com ansiedade climática. Sou, na verdade, Solarpunk.


Solarpunk é um movimento literário, artístico e tecnológico descentralizado formado por pessoas que acreditam num futuro diferente, no qual a tecnologia é utilizada de modo consciente em benefício de todos os seres vivos, um futuro mais integrado à natureza. Solarpunk é punk no sentido de romper com o status quo, com os valores dessa sociedade que prega o acúmulo de capital, crescimento infinito e individualismo, que enxerga pessoas, animais, vegetais e a Terra apenas como “recursos”, e não como uma entidade viva, complexa e integrada.

É mais fácil definir o Solarpunk por algumas verticais de valores, como por exemplo:

  • Mais comunidade, mais troca, menos compra de tempo e força de trabalho. Mais arte, menos publicidade;
  • Uso da tecnologia em prol do bem estar comunitário. Prioridade para tecnologia limpa e renovável;
  • Visão de longo prazo e durabilidade: consertar, reutilizar, reinventar em vez de comprar novo;
  • Agricultura sustentável e distribuída: mais hortas, mais florestas de alimentos, menos monocultura.
  • Conhecimento distribuído, coletivo e acessível. Diversidade de pessoas e visões, respeito a conhecimentos ancestrais.

Jay Springett tem uma apresentação muito boa do que é Solarpunk, no belo texto (em inglês) “SOLARPUNK – Life in the Future Beyond the Rusted Chrome of Yestermorrow“.

O que me fascina no Solarpunk é a proposta de um caleidoscópio de visões de futuro para almejar, não evitar. Sou escritor de ficção científica, um gênero que se deleita em contos cautelares: impérios galácticos que destroem planetas inteiros em busca de lucro, em guerras por poder, (ou pela necessidade de passar uma autoestrada), mundos hipervigiados, hiperconsumistas, fascistas.

Douglas Roushkoff, escritor de livros como “Survival of the Richest” e apresentador do podcast “Team Human” tem uma frase interessante: de que as coisas que precisaremos fazer para sobreviver após um colapso são as mesmas que podemos fazer hoje para evitá-lo: agricultura regenerativa, vida em comunidades, menos descarte, mais reaproveitamento.

Ideias e movimentos como esses emprestam muito de conhecimentos tradicionais indígenas, quilombolas e mantidos por comunidades em diáspora. Os mesmos princípios estão em “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, por exemplo. O princípio fundamental é o mesmo: vivemos um padrão de consumo que o mundo não dá conta de sustentar.

A solução varia de acordo com o freguês.

“Aceleracionistas” são aqueles que acham que a solução é pisar no acelerador que a solução virá magicamente da Tecnologia, da Inteligência Artificial, da vida em outros planetas, ou que pensam que o mundo é assim mesmo e que eles se tornarão soberanos com uma vida boa em um mundo caótico. Pense em bilionários negacionistas que investem em desinformação.

Em relação a tecnologia, há quem argumente que nós precisamos de alta tecnologia para ajudar na restauração dos ecossistemas. Investir em fusão nuclear, paineis solares, carros elétricos. A única saída é para frente, decarbonizar o máximo possível por meio de alta tecnologia. As próximas grandes revoluções serão na química, biologia e genética. Pense em “paineis solares com bactérias fotossintéticas” e “grandes plantações transgênicas de alto desempenho em climas extremos”.

Já movimentos chamados de “degrowth” ou “decrescimento” apelam para o senso comum de que não é possível crescer para sempre. Para pisar no freio e reduzir o consumo será preciso um novo paradigma econômico, já que o capitalismo é um grande esquema de pirâmide que assume crescimento infinito. Pense em bioconstrução, bambu, terra, agricultura familiar.


Sofro de um negócio chamado “ansiedade climática“, um sentimento sempre presente de ausência de um futuro que valha a pena viver, devido a problemas ambientais. Quando leio que a maioria dos incêndios recentes foi causado por queimadas intencionais, me bate um desespero, essas pessoas não vivem no mesmo planeta que eu? Não vão respirar a mesma fumaça por meses até que venham as chuvas?

É um sentimento de que a humanidade está condenada, uma dificuldade em viver o dia-a-dia sem pensar em impacto de carbono o tempo todo. De fazer uma simples compra online com frete grátis e pensar na quantidade de gasolina queimada para que essa caixa de parafusos chegue até minha casa, enquanto o ideal seria ir até o comércio local comprar a mesma caixa pelo dobro do preço, mas e o orçamento apertado?

O primeiro passo para lidar com ansiedade climática é reconhecê-la e ouvir os seus próprios sentimentos sobre isso. O segundo é entender o que você pode e o que você não pode fazer.


Vamos fazer um desvio para falar da Oração da Serenidade? Sim, vamos.

Conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para discernir uma da outra.

Atribuída a São Francisco de Assis, na tradição cristã, essa linha lógica está presente em diversas tradições filosóficas e religiosas, como em Epiteto, para estoicistas (“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São encargos nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa – em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa.) ou em Shantideva, na tradição budista (Se não há solução quando os problemas surgem, qual a razão para o desânimo? E se não há o que fazer, de que serve ficar taciturno?).

A melhor maneira de reduzir a ansiedade climática é viver uma vida na qual você acredita, com pequenas atitudes que você consegue controlar. Ninguém sozinho consegue prevenir um incêndio de grandes proporções ou uma seca, mas dá pra reduzir o consumo de carne e fazer uma composteira no quintal.

Um passo de cada vez. Tentar andar um pouco menos de carro, mais de bicicleta. Talvez comprar uma elétrica? Fazer uma horta em vasinhos. Convencer a firma a trocar a embalagem plástica por papel. São passos pequenos, insuficientes.

Minha ansiedade climática vem e vai. Me pergunto como deve ser viver sem se sentir parte do problema. Passo meses fingindo ser normal, até chegar a essas semanas quando o sol se torna uma bola vermelha ao fundo de uma cortina de poeira e fumaça, e minha cabeça vai direto para o “vamos todos morrer.”

O futuro não é mais como era antigamente.

Mas, quer saber? Ainda bem que conseguimos imaginar outro futuro. “Progresso” já foi a mãe tirando o jantar industrializado do freezer direto para o microondas para ser comido em pratos de plástico descartável.

O capitalismo inventou ideias tortas como obsolecência programada, fast-fashion, jogo do tigrinho e pagar mensalidade para poder usar o aquecedor do banco do seu carro. Jeff Bezos tem mais dinheiro do que muitos países, e por algum motivo nós achamos isso normal.

Seria inconcebível (e até um pouco triste) imaginar o mundo daqui a 70 anos com esses mesmos valores de hoje. Quando o lucro é a única métrica válida, a empresa mais valiosa do mundo exige que seus motoristas mijem dentro do carro para economizar tempo. Esse lógica só é possível um sistema de valores onde os responsáveis pelas decisões não se sentem parte do mundo daqueles afetados por ela. Que executivo autorizaria trocar um processo industrial que poluiria o córrego onde seus filhos vão brincar? Muito mais fácil quando a canetada afeta uma fábrica lá na China.

Estou me perdendo de novo. “Sabedoria para distinguir o que não posso controlar”, lembra?


Tanto preppers quanto solarpunks acreditam em algum tipo de colapso, a não continuidade do que temos hoje. Que pode acontecer de uma vez (algo como a detonação do arsenal nuclear) ou em uma sequência de vários pequenos apocalipses, um país colapsando de cada vez, num efeito em cascata. Ambos acreditam em se preparar para este evento.

A diferença fundamental é que enquanto preppers têm como valor norte o individualismo (ter o suficiente para mim e para minha família e meios para defender meu estoque), solarpunks têm como guia a formação de comunidades e redes de solidariedade, utilizando a sabedoria, capacidade e criatividade de cada um em benefício do coletivo. Muito mais “vamos nos juntar para criar uma vida que valha a pena sobre esses escombros e reconstruir.”

Outra definição de Solarpunk é “um motor memético para imaginar um futuro no qual queiramos viver“.

É aqui que as coisas começam a fazer sentido. O Espaço Kabouter não é um bunker, mas um convite. “Espaço” é o termo chave, porque aqui será um ponto de encontro de pessoas, um lugar para se fomentar comunidades, algumas presenciais, com encontros frequentes, outras criadas por laços mais soltos e ideias parecidas, espalhadas geograficamente por todo o país e até outros países (no primeiro curso, de Taipa de Pilão, tínhamos até participantes da Argentina).

É um lugar onde acontecerão cursos de bioconstrução (construir com bambu, com terra, madeira, construir com técnicas vernaculares em mutirões), de impressão 3D (tecnologia pode ser uma aliada contra a obsolescência programada, imagine imprimir só a peça que deu defeito?), de agricultura regenerativa, de marcenaria e serralheria artística, de literatura, poesia, artes. Enfim, um espaço de encontros.

Sempre penso no Espaço Kabouter como um espaço sustentável, no sentido mais amplo do termo:

  • Sustentar comunidades e discussões abertas a ideias diferentes;
  • Sustentar financeiramente as famílias ao redor (incluindo a minha);
  • Um espaço economicamente saudável, que honre os compromissos e dívidas que assumiu e tenha verba para se expandir e atuar cada vez mais junto à comunidade;
  • Sustentar o bioma, as redes microbiológicas do solo, a fauna e flora deste pequeno espaço de chão;
  • Sustentar energeticamente pessoas vivendo neste grande momento de transição.

Talvez eu deva imprimir a lista acima e pendurar no lugar de “visão, missão e valores”.


Não sei o que vai ser do futuro. Tento lidar com a ansiedade climática repetindo a Oração da Serenidade enquanto levo as embalagens dos brinquedos de plástico das crianças para o centro de reciclagem da cidade, lendo um pouco do jornal para não viver com a cabeça enfiada em um buraco, mas longe das redes sociais e do ciclo ininterrupto de notícias que só confirma o fim do mundo.

Está claro que o mundo não sustenta o que está aí. Mas com colapso ou ou não, sigo tentando construir um futuro que valha a pena viver, trabalhando para amenizar o impacto da mudança, criando comunidades, tentando a fazer diferente, abraçando o DIY, abraçando todo tipo de Arte, tentando trazer mais gente pra aprender e construir junto.

O Espaço Kabouter é o resultado desse caldo que fervilha aqui dentro. Porque minha visão de futuro é muito menos um cara solitário abraçado a uma arma em um bunker, e muito mais um barracão cheio de amigos construindo junto.

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